Free Jazz Black Power, Philippe Carles e Jean-Louis Comolli

 

Editado em Portugal em 1976, Free Jazz Black Power (1) lança uma nova perspectiva sobre o Jazz, trazendo para a ribalta a política, a economia e o racismo; mas também sobre a crítica que o observava o Jazz como apenas mais uma forma musical.

Free Jazz Black Power é um livro fundamental, um dos mais importantes livros sobre Jazz, e não apenas sobre o free, e eu iria de sempre, e é um livro de leitura obrigatória para todos os que se interessam pelo Jazz. Ele mergulha fundo nas origens do Jazz e na sua razão de ser social, e não apenas como um estilo musical, tornando claro como ele é, desde as suas origens, uma forma de afirmação cultural e social negra (2), mesmo se ele absorve e interpreta diferentes formas musicais, entre a ocidental – branca e folclóricas ou eruditas. O livro evidencia como as diferentes correntes musicais do Jazz corresponderam a relações com a música branca, como o Jazz reagiu a aculturações ou apropriações do mercado (como o swing) e de que forma é que a sociedade branca e negra reagiram.

Como disse, explicitamente, Free Jazz Black Power traz a política, a economia e a sociedade para a música, mesmo se outros autores (como eu desenvolvi noutros textos, como o fiz sobre Jazz de Rex Harris) já tinham introduzido a questão social no surgimento e desenvolvimento do Jazz. 

Se do ponto de vista estritamente musical, com o advento do free, o Jazz tinha explodido em todos os sentidos, esse movimento (esses movimentos, porque eles eram tudo menos homogéneos) era acompanhado por uma politização sem precedentes na sua história, que era explícita nas afirmações dos seus protagonistas, e que radicava afinal na explosão dos movimentos cívicos que se sucederam à rebelião de Rosa Parks (3). O radicalismo da música teve expressão na crítica com o aparecimento dos primeiros críticos musicais negros, onde se destacou LeRoi Jones (Amiri Baraka), que dizia simplesmente que a crítica de Jazz estava entregue a brancos e eles não sabiam o que diziam ao tomar o Jazz apenas como uma forma musical; e eles tinham afinal como parâmetros a música ocidental – tanto nos detractores como nos apologistas. O Jazz, dizia, era, afinal, a expressão da revolta dos negros.

Os autores de Free Jazz Black Power eram dois brancos, franceses, mas, de certa forma, mais longe da sociedade segregada norte-americana, eles puderam observar e compreender, com distanciamento e pertinência, o fenómeno free jazz, mas o próprio jazz, a génese – o que lhe tinha dado origem, e porque é que o Jazz só podia ter nascido na américa segregada, et pour cause. Esses músicos recusavam a apropriação e a aculturação do Jazz (através do swing e das big bands de dança, a indústria – que privilegiava o jazz branco e os seus músicos -, os media – que ignoravam os músicos negros ou os mimetizavam) e, de forma diferente do que tinham feito os boppers, verbalizavam-no.

Enfim, Free Jazz Black Power é um livro muito marcado pela ideologia, um marxismo que se subentende, e que está patente na valorização da economia e da luta de classes, mas também na utilização generalizada de termos que diríamos algo passados de uso do tipo «burguesia capitalista», mesmo se pertinentes.

Free Jazz Black Power está subdividido em três capítulos e dois apêndices – «Cem músicos free» e uma «discografia selectiva». Os capítulos são «Não é um problema negro: é um problema branco»; «Notas sobre uma história negra do jazz» e «Contradições do jazz em liberdade».

Não é um problema negro: é um problema branco
O primeiro capítulo, subdividido em «O jazz hoje», «Propriedade económica do jazz», «Colonização cultural» e «O trabalho cego da crítica», parte da gravação de Free Jazz (Ornette Coleman, 1961), um duplo quarteto «formação absolutamente invulgar» (4) , «música improvisada colectivamente, tocada deliberadamente fora da maior parte (…) das regras (…) não só do jazz “clássico”… como também daquele considerado como o mais “moderno” (… bop… cool, etc)» (5) .

Escândalo, vanguarda, música áspera, feia, desagradável, hermética; «é que, tal como o bebop, o free jazz, duma forma ainda mais nítida, não é apenas um pôr em causa, no plano musical, de formas e estilos que o precedem historicamente: a sua acção extravasa este campo estritamente musical para envolver os campos cultural e ideológico» (6); e «Rapidamente, irá revelar-se como um acto de resistência cultural: a reapropriação… por parte dos Negros americanos, músicos e ouvintes, duma música que originalmente lhes pertenceu, isto é, que eles fabricaram em condições históricas, sociais e culturais (deportação, escravatura, miséria, racismo) que foram deles e de mais ninguém» (7). 

O nome do disco – Free Jazz - seria adoptado pelo movimento (aglomerando as inúmeras formas) em detrimento de New Jazz, New Music, Black Music ou ainda New Thing, como também foi designado anteriormente.
O desenvolvimento do free jazz acompanhou a organização e radicalização dos movimentos políticos negros e a sua formulação ideológica e mesmo acção, numa disparidade que incluía partidos (Black Phanter Party) e movimentos pacifistas e militares, manifestações de todo o tipo; mas também, e simultaneamente, recuperando valores de uma ancestralidade que eles não conheciam (e apenas idealizavam) – a África mãe (e ironicamente também a religião muçulmana) e afirmando a beleza da negritude: Black is Beautiful. E convém observar também que, se muitos destes movimentos eram reivindicativos e pacíficos, muitos outros eram declaradamente racistas.   

O free jazz era, de certa forma, a expressão cultural maior do orgulho negro, (supostamente) inassimilável pela ideologia racista branca (8).

Em «Propriedade económica do jazz», os autores descrevem como, se num primeiro momento o jazz foi tratado como uma forma folclórica menor, detratado pela crítica musical (branca) e pelo público – e vituperado pela moral puritana -, ele foi, a partir dos anos 20, assimilado, plagiado, embranquecido e apoderado pela indústria fonográfica e do espectáculo (9).

E toda a história do Jazz pode ser contada como a história da propriedade económica do jazz e da indústria. Os dois autores de Free Jazz Black Power descrevem exaustivamente como a indústria se apossou dos direitos, escolheu quem gravar e quem não gravar, com as infindáveis histórias de racismo e discriminação: «A indústria musical americana, durante decénios, explorou, enganou, roubou, desprezou, excluiu, plagiou os cantores, músicos de jazz e compositores negros, e isso trouxe-lhe proveito» (10).

No subcapítulo «Colonização cultural», os autores descrevem a assimilação operada pelos «brancos». Depois de um primeiro período em que os jornalistas e os críticos de música vituperaram o Jazz de todas as formas que sabiam, apresentando-a como música simiesca, de selvagens ou de pretos reles, moralmente indefensável: «Os governos deviam proibir o jazz do mesma forma que a morfina ou a cocaína, pois esta forma só pode degradar o gosto e a moral do público» (11); a própria indústria viu no Jazz uma oportunidade de negócio, mas para isso necessitou de o embranquecer, plagiando-o nas suas formas exteriores, popularizando-o através das orquestras de dança e mesmo promovendo imitadores brancos; ao mesmo tempo que alguma crítica começava a aceitar o Jazz ou mesmo a fazer a sua defesa. Mas se para alguns jornalistas, por um lado, a perspectiva era simplesmente o negócio da música de dança ou o espectáculo (12), para os primeiros críticos entusiastas do Jazz, a perpectiva era sempre a da música branca. LeRoi Jones ou Malcom X, de acordo com os autores, atiravam-se a essa crítica: eles não compreendiam como o Jazz tinha sido criado por filhos e netos de escravos, a razão de ela ser «música feia», e que por isso o modelo não podia ser a da música ocidental, bonita, cheia de regras. A própria condição de negro fazia parte da definição do Jazz.

E os autores citam Andre Coeuroy, da sua Histoire Generale du Jazz:

«Todo o “material musical” que está na base do jazz (cânticos religiosos ou sociais, baladas ou danças, spirituals ou blues) ostenta a marca dum tributo pago à Europa. (…) Pode então concluir-se que o jazz encontrou a sua unidade ao cristalizar-se no molde europeu da variação e do concerto: uma técnica harmónica europeia (de Liszt a Ravel, passando por Debussy)…» (13).

Não sendo generalizável, esta opinião apologética do Jazz basear-se-ia «em nobres princípios (tolerância, abertura de espírito, modernidade, progressismo, etc.) e conduzindo-a contra os aspectos passadistas e ideologicamente fechados da elite ocidental» (14); mas, de facto, estes partidários do Jazz «estavam do mesmo lado dos que o atacavam, não só por estarem dentro das mesmas determinações históricas e ideológicas, todos dentro da sociedade capitalista e da civilização ocidental, como dentro dos seus modelos culturais e estéticos…» (15).

Os autores apontam a contradição principal dessa crítica que se coloca entre:
«uma música historicamente, socialmente e culturalmente determinada por uma civilização não-ocidental e, ao mesmo tempo, pelas piores realidades do sistema capitalista e da sua ideologia (escravatura, racismo), e os critérios estéticos burgueses, parte integrante da civilização ocidental, que pretendem julgá-la.» (16);
concluindo:
«O jazz não tem grande coisa a ver com as estéticas idealistas que comandam, nas sociedades capitalistas, a música e a arte; histórica e culturalmente produzido segundo forças diferentes, segundo outras necessidades, outras axiais, não faz parte da história das artes ocidentais. Sendo um facto que a burguesia capitalista sempre em pensado as suas artes como a única Arte, referência e modelo, padrão de avaliação de todas as outras…» (17).

O que os críticos afinal não compreendiam era essa origem diferente entre os músicos negros e os brancos, mesmo entre os músicos de jazz brancos:
a «participação directa de músicos brancos na música negra … é da ordem… da imitação, do empréstimo… Não é por o jazz só se ter constituído musicalmente pela assimilação e reinterpretação dum grande número de elementos musicais ocidentais (desde as fanfarras militares, danças, cânticos de igreja, até à utilização de elementos da música clássica e contemporânea), que se tirna ipso facto, em si mesmo, assimilável pelos músicos ocidentais». Os Negros americanos – e não apenas no plano musical – viram-se constrangidos, em razão da sua deportação para uma civilização estranha, a ingerir e digerir uma quantidade considerável de elementos exógenos (religião, sistema social, linguagem e escrita, moral, cultura, ideologia, filosofia, etc.). É exactamente o facto de se encontrarem absolutamente submetidos (sem outra alternativa) à coacção destas influências que é específico da situação histórica, social e cultural dos Negros americanos: é isso que não é “imitável”.» (18)

E sobre a história do jazz:
«A crítica ocidental construiu a história do jazz segundo o modelo idealista da história das artes no Ocidente: como uma história autónoma, simples sequência de factos e nomes, fixando-se ela própria à margem da história, a resguardo. Conhecendo, claro, variações, evolução de estilos, escolas: mas como se elas se produzissem umas às outras, se fossem auto-engendrando independentemente das pressões da sociedade e da História…; tudo o que um músico pudesse ficar a dever à sua própria experiência vivida, aquilo que na sua música fosse presença agitada de conflitos, o que fazia com que tal ou tal corrente surgisse num determinado momento, disso não falava porque isso excedia o domínio da arte para abranger outras categorias: sociologia, política, história.» (19)

Notas para uma história negra do jazz
O segundo capítulo, que ocupa mais de metade do livro, «Notas para uma história negra do jazz», parte daqui: «Pensamos que esta relação música/sociedade/política, revelada pelo empenhamento do free jazz, não data apenas da época deste, mas é sim uma constante, um elemento construtivo original da música negra» (20). E sobre a valorização comercial do jazz: «Porque a música (mesmo não adoçada) era considerada, evidentemente, menos “perigosa” que a literatura, a poesia, o pensamento negros» (21), e enfim: «esta dupla contextualização da música negra que precedeu e gerou o free jazz fornece-nos a possibilidade de apreciarmos o contributo e dimensões específicas deste movimento. Pois não se pode reduzir o free jazz a um «novo estilo» desde o momento em que o liguemos às contradições e forças em jogo na história comum da música e das lutas dos negros na América» (22).

E o livro mergulha enfim, fundo, na história dos negros nos EUA, sem pretender fazer a história, mas apenas «apontar um certo número de factos e dados históricos que habitualmente não figuram nas histórias do jazz» (23); da escravatura às origens musicais das worksongs, blues, espirituais e jazz.

E diria que, apesar da modéstia dos autores, estas mais de cento e quarenta páginas constituem uma sólida e informada história dos negros norte-americanos e do Jazz. Carles e Comolli percorrem toda a história da América desde a «migração» dos negros e a forma como eles se adaptaram (foram «adaptados») de acordo com as necessidades económicas do esclavagismo, e de como os brancos justificaram o esclavagismo, até à história recente, sobrelevando os episódios (alguns) da luta dos negros, identificando as relações que produziram as worksongs e as primeiras formas musicais negro-americanas, explicitando como estas relações são, de facto «um elemento construtivo original da música negra», sem o qual o jazz não pode ser compreendido.

«O que dizem os blues», a escravatura (o nascimento da América branca), as revoltas, organizações e reivindicações, a escrita negra, a herança africana, as reminiscências e as worksongs, os cantos religiosos, os blues, as baladas, as dirty dozens, as músicas «sérias» e os minstrels e as fanfarras, a proletarização dos negros, as lutas negras, o branqueamento, a aculturação, o middle jazz, a soul music, tudo é escalpelizado em Free Jazz Black Power, nas relações, na forma como a música correspondia, em última análise, à luta de classes e em simultâneo à gestação e evolução da música negra. Que o free jazz afinal esclareceu.

Contradições do jazz em liberdade
Enfim, o último capítulo, «Contradições do jazz em liberdade», debruça-se sobre o free jazz. Um primeiro subcapítulo observa a liberdade formal que o free jazz reivindicou para si: «O que imediatamente ressalta na audição de obras de free jazz, é o seu polimorfismo, a multiplicação/ colisão/ justaposição, a todos os níveis e em todos os sentidos, do material, códigos, fontes e modos (e mundos) que os músicos utilizam ou a que fazem referência…» e «À massa de elementos exógenos – em relação ao “jazz” – que flutuam, tal qual, à superfície da sua música, acentuando a impressão de mistura e sublinhando na realidade as contradições que os jazz precedentes, à falta de os equacionarem, tinham tentado disfarçar em “sínteses”, vem acrescentar-se a sistemática desfixação dos elementos que a crítica branca pudera/ quisera julgar específicos de toda a(s) jazzidade(s)» (24).         

«Do mesmo modo que no tempo do bop alguns amadores e críticos se queixavam de já não poderem identificar os temas, trampolins melódico-harmónicos das improvisações, uma das primeiras censuras feitas ao free refere-se à ausência, ignorância ou desprezo pelo tema» (25).

O tema deixou se ser o motivo, o centro, no free: «o tema deixa de ser forçosamente aquilo que anuncia e conclui a improvisação. Deixa de constituir para ela o suporte, a matéria prima, a garantia melódica e/ ou harmónica; ao mesmo tempo, desaparece a noção do par indissociável tema-improvisação sobre este tema. Existe a improvisação, existe igualmente – ao lado – o tema (por vezes os temas), mas aquela não está mais na dependência deste»(26).

«Até ao aparecimento do free (…) um mal-entendido (…) fez com que o jazz fosse muitas vezes apreciado apenas em função da “beleza”, do poder de sedução dos seus temas; consideradas como “brincadeiras” mais ou menos conseguidas, as partes improvisadas eram já escutadas distraidamente. Esta sobrevalorização do elemento temático é evidentemente indissociável dos critérios musicais dos países do Ocidente…» (27). «O tema não é banido pelos jazzmen free da sua música. Simplesmente: deixa de ser privilegiado em relação aos restantes elementos; dessacralizado, vai ser utilizado, aproveitado. Pode até ser trauteado. Mas não exerce mais, como dantes, qualquer supremacia sobre o resto da obra» (28).

Se o Jazz tinha inventado ou reinventado os instrumentos, a «adaptação do material instrumental às contingências da música negra (…) vai ser radicalizada no free jazz.» (29): O instrumento não é mais que um prolongamento da voz, do corpo, a exemplo dos bluesmen; todas as suas pulsões físicas, mesmo as mais brutais, são transmitidas pelo instrumento à música, a qual inscreve a corporeidade posta em jogo (30).

O lugar da improvisação no Jazz é de igual forma subvertido: ele deixa de ser apenas «o intérprete», sendo que todos os músicos são «solistas»; «a música pode ser tocada colectivamente e numa forma livre» (31), numa restauração dos princípios da improvisação colectiva: a improvisação free é policêntrica, livre e estruturante (32).

E sobre o ritmo no free jazz, citando Marion Brown: «Não é exacto dizer que o free não swinga. Ele swinga apoiado num grande número de ritmos. É polirrítmico» (33). E Milford Graves: «Até aqui, a função do baterista era manter o ritmo. Marcava os compassos e nada mais, ainda que uma ou outra vez se lançasse num solo. (…) Presentemente a bateria é um instrumento; deve ser usado para produzir música e não mais para ligar entre eles os diversos instrumentos» (34), subvertendo o papel da bateria e das secções rítmicas, como conclui Cecil Taylor: (na medida em que) «o ritmo se torna melódico, e os instrumentos melódicos se tornam rítmicos, (…) deu-se uma permuta das funções tradicionais (35)»: «enquanto que o tempo e a natureza do swing eram, no jazz tradicional, definidos logo desde os primeiros compassos dum trecho, o destino das obras free permanece obstinada e perfeitamente imprevisível» (36).

Se o Jazz se estabeleceu por mais de cinquenta anos como uma forma americana (e não apenas negra, desde logo desde Duke Ellington), mesmo se, como vimos, as heranças africanas, mesmo as mais distantes, nunca deixaram de estar presentes, elas assumiram uma presença explícita e forte no free jazz de Archie Shepp, Art Blackey ou John Coltrane (até por motivos culturais e políticos na assunção da “singularidade” negra, e muitos músicos e políticos negros adotaram nomes muçulmanos – como LeRoi Jones: Amiri Baraka), mas a diversidade estética do free fez explodir as barreiras, encontrando as referências mais improváveis (e exóticas) no Oriente, na América Latina, na música ocidental (!), mesmo inventando as suas próprias referências (Sun Ra), ou recuperando o blues e a «alma negra» do Jazz dos primórdios.

Em «Música/política» (subcapítulo de «Contradições do jazz em liberdade»), Carles e Comolli fecham o círculo: «Tentámos mostrar como um certo número de “estilos” de jazz, de formas musicais, de opções estéticas, tinham estado ligados a momentos específicos dos campos extra-musicais (condições económicas e suas traduções, no plano da ideologia, na consciência política e nas tendências culturais)» (37). É uma visão muito marcada ideologicamente, se bem que não propriamente original – e notemos que outros autores, como Rex Harris em Jazz (38) revelavam esta «ligação», mesmo se não tirava dela conclusões políticas, ou outros como LeRoi Jones, em textos espalhados pelas revistas da especialidade, entre a Down Beat e a Jazz Hot, nos anos 60, privilegiava, pelo contrário a perspectiva político-social: «Aos diversos tipos de relação dos Negros americanos com o sistema que os explora económica, social e culturalmente: resignação, aceitação, participação redentora ou resistência, luta nacionalista ou revolucionária, correspondem as diversas fases – e contradições – da evolução do jazz.» (39).  

E sobre o free jazz: «O free jazz constitui o reassumir e o radicalizar – musicalmente, culturalmente, politicamente – do conjunto dessas diferenças» (40) (luta de influências, a dominante e a dominada); e sobre a diversidade do free: «Esta diversidade (as concepções e formas múltiplas do Jazz, tanto de músico para músico como, em função da sua evolução num mesmo músico (41), estas contradições, proíbem a redução do fenómeno free a um “estilo”, ou a uma “escola”: contrariamente ao que acontecia com o bop, nada unifica musicalmente o free.» (42), concluindo: «O que estabelece o fenómeno free como um conjunto, o que articula e estrutura a multiplicidade das suas manifestações musicais, são as comuns sobredeterminações destas pela história, pelas relações sociais, pelo nível das lutas políticas e ideológicas, pela atitude cultural face ao jazz anterior.» (43) .

Invocando o antropólogo Michel Leiris (44), o free jazz surge para os autores como uma inevitabilidade e uma consequência: «Numa situação de tipo colonial, a instância cultural está directamente determinada pela política: a cultura ou é dos colonizados ou a dos dominadores» (45) e «A cultura revolucionária só pode ser revolucionária ou cúmplice: ou assenta na história dos Negros americanos (escravatura, revoltas…), de que a grande maioria das produções artísticas negras constitui um tomar em consideração (poemas, romances, música, teatro); ou então, conformando-se com o sistema de repressão/ defesa da sociedade americana, oculta esta história, minimiza-a: exclui-se dela, “integra-se” na história dos senhores. Não existe uma terceira alternativa…» (46)

Dez anos de free jazz
Apesar da idade do «fenómeno» free: dez anos à escrita de Free Jazz Black Power, o free possuía já um número substancial de músicos em carteira, que os autores biografaram em jeito de posfácio, «Cem músicos free» - entre a AACM e Larry Young, passando por Albert Ayler, Carla Bley, Paul Bley, Lester Bowie, Anthony Braxton, Ornette Coleman, John Coltrane, Eric Dolphy, Charlie Haden, Steve Lacy, Archie Shepp, Sun Ra ou Cecil Taylor – e uma «Discografia selectiva» não comentada de uma centena de títulos.

Free Jazz Black Power foi escrito em 1971 (e editado em Portugal em 1976 pela Regra do Jogo). É um livro muito marcado ideologicamente, o que trespassa pela linguagem, mas ele é substancialmente fundado. O Jazz não é apenas música (e o free jazz não é apenas música): ele é o produto de relações culturais, um produto de relações de dominação-dominado (luta de classes, assim o afirmam implicitamente), um produto da sociedade americana, e só aí poderia ter surgido – conflituosamente, conturbado, vivo! – foi o que demonstraram Philippe Carles e Jean-Louis Comolli. E se o jazz de New Orleans resultava do choque de culturas, o bebop denunciava a revolta, o free jazz era a revolução.

Quando o livro foi escrito o fenómeno free tinha uma década e não era possível aos autores antecipar o futuro do Jazz e, como muitos outros livros, Comolli e Carles escrevem como se se estivesse a assistir ao fim da História – e em boa verdade a explosão que o Free operou na música assim o autorizava, ou sugeria -, e eles não podiam adivinhar como, cinquenta anos depois, o mainstream tenha adoptado muitos dos excessos do free, banalizando-o, e o free jazz contemporâneo surja nas suas formas mais radicais desprovido da sua substância político-social. Muitos músicos free que Carles e Comolli identificavam são hoje considerados músicos mainstream: Archie Shepp e Ornette Coleman, Coltrane, Pharoah Sanders, Charlie Haden, Carla Bley e Gary Peacock; ou surgem apalhaçados, como Sun Ra e até mesmo Albert Ayler!

Se muitos jovens músicos, por ignorância, pensam estar a descobrir coisas novas, que já foram «descobertas» há mais de 50 anos, ou, por outro, muitos se consideram vanguardistas porque se inspiram nessa vanguarda dos anos 60 (como se uma «vanguarda» pudesse perdurar cinquenta anos); por outro lado a indústria integrou e banalizou o free jazz; e hoje pode assistir-se a concertos free no veludo das poltronas de boas salas de espectáculo (sem as preocupações políticas radicais que estavam associadas ao movimento free).

Comoli e Carles criam que se tinha chegado ao fim da música e do Jazz e eles não podiam antecipar o Miles eléctrico e a fusão e movimentos de recuo e avanço, Keith Jarrett e Charles Lloyd estavam a nascer, a importância que o saxofone de Wayne Shorter ganharia ou a bateria de Jack DeJohnette, e não podiam prever Wynton e Branford Marsalis, Brad Mehldau, Ambrose Akinmusire e Jason Moran, Bill Frisell, Miguel Zenon, Jon Irabagon e Rudresh Mahantappa, Steve Colemen, Vijay Iyer ou Steve Lehman, e de forma nenhuma os filhos de John Coltrane e Dewey Redman.

A História não é uma linha direita, tãopouco a História da Arte, ou do Jazz; mas em nada retira a importância de Free-Jazz Black Power. O livro de Philippe Carles e Jean-Louis Comolli é mesmo um livro fundamental, e assim persiste, cinquenta anos depois, de leitura obrigatória por todos os interessados no estudo do Jazz.

Há muito desaparecido do mercado, diria que Free Jazz Black Power é muito mais que um livro sobre o free jazz, e ele vai ao fundo das razões de ser do (aparecimento do) Jazz, musicalmente, esteticamente, culturalmente, socialmente e politicamente e, apesar do tempo, ele mantém-se actual e merecedor da atenção dos estudiosos do Jazz. E a sua reedição teria toda a pertinência. 

Philippe Carles e Jean-Louis Comolli
Uma última nota sobre os autores:

Philippe Carles (1941) é um jornalista francês nascido em Alger. Apaixonado pelo Jazz, começa a escrever para a Jazz Magazine em 1962, assumindo as funções de chefe de redacção da revista em 1971, que manteve até 2006, quando se retirou. Foi produtor de rádio de 1971 a 2008, e é autor de diversos livros, entre os quais Le Jazz (1977), Dictionnaire du Jazz (com J.-L. Comolli e André Clergeat, direcção – 1988, com várias reedições até 2011) e Free Jazz Black Power com Jean-Louis Comolli (1971).

Jean-Louis Comolli (1941-2022) notabilizou-se como apaixonado do cinema e do Jazz. Foi editor dos Cahiers du cinéma no período conturbado de 1966 to 1978, sendo também director de uma vintena de filmes e documentários, escritor e jornalista. É co-autor, com Philippe Carles, de Free Jazz Black Power (1971) e do Dictionnaire du Jazz (com J.-L. Comolli e André Clergeat, 1988-2011).

Free Jazz Black Power, Philippe Carles e Jean-Louis Comolli, A Regra do Jogo, 1976 (1971)

 


(1) Editado em França em 1971, com edição nacional da Regra do Jogo de 1976.

(2) De certa forma ignorando ou não considerando, ou não relevando, a participação dos músicos crioulos ou brancos – entre Jelly Roll Morton e Bix Beiderbeck - que ofereceram um carácter sério ao Jazz dos primórdios.

(3) Refiro-me à recusa de Rosa Parks de se levantar do banco do autocarro assinalado como white only, 1955

(4) Free Jazz Black Power, p. 17

(5)Idem

(6) Idem, p. 18

(7) Idem

(8) E poderíamos observar aqui como a radicalidade formal do free jazz foi absorvida pelas (autoproclamadas) vanguardas musicais do século XXI, embora esvaziadas da carga política e ideologia da música desse período.

(9) Note-se que o primeiro disco de Jazz jamais registado foi-o em 1917, por um grupo exclusivamente constituído por brancos – a Original Dixieland Jass Band; e o primeiro músico a ser coroado como «O Rei do Jazz», foi Paul Whiteman, um músico menor, nos anos 30.

(10) Free Jazz Black Power, p. 37

(11) Idem, p. 50

(12) «A primeira definição do jazz reconhecida como “universal” foi a de música distractiva (antagónica da música “clássica”, séria», idem, p. 46

(13) Idem, p. 53

(14) Idem, p. 54

(15) Idem

(16) Idem, p. 55

(17) Idem

(18) Idem, p.57

(19) Idem, p.68

(20) Idem p.71

(21) Idem p.71-72

(22) Idem p.72

(23) Idem p.71

(24) Idem, p.217

(25) Idem, p.219

(26) Idem

(27) Idem, p.220

(28) Idem, p.221

(29) Idem, p. 223

(30) Idem, p.224-225

(31) Albert Ayler para a Jazz Magazine, idem, p.226

(32) Free Jazz Black Power, p. 226-227

(33) Idem p.227

(34) Idem

(35) Idem p.227-228

(36) Idem, p.229

(37) Idem, p.239

(38) Jazz, Rex Harris, Ulisseia, 1952, sobre que escrevi em JazzLogical (https://www.jazzlogical.net/jazzologia/Literatura/1%20Jazz_Rex_Harris.htm)

(39) Idem

(40) Idem, p.240

(41) Parenteses JazzLogical

(42) Free Jazz Black Power, p.240

(43) Idem, p.241

(44) L´ethnographe devant le colonialisme, Michel Leiris, citado por Carles e Comolli, idem, p.255

(45) Idem, p.255

(46) Idem.